SONHO OU REALIDADE



 

Há muito tempo que eu e a Ana o estávamos a observar.

Só havia uma coisa a fazer, ir ajudar aquele indigente.

Mas como fazê-lo?

Enchemo-nos  de coragem e pé ante pé quase a medo, dirigimo-nos a ele e sentamo-nos a seu lado, no chão do calçadão da Caparica , em frente  à Catedral.   A Catedral é o nome de um dos vários restaurantes que o  “Barbas” tem no calçadão das várias praias da Costa da Caparica.

“ Olá …, eu sou o Miguel  e esta menina é a minha amiga Ana.”

“ Olá …, Chamam-me o “Mon ami” por ter nascido em França, estou em dificuldades e sinto-me muito infeliz.

“ Pois,... já vimos que sim... que estás em apuros. “

Ele era jovem, mas com a barba crescida, o cabelo comprido, sujo e despenteado, os olhos encovados e com olheiras davam-lhe um aspecto mais velho. Agora que estávamos a seu lado dava para testemunhar que cheirava a transpiração e a roupa suja.

Tinha um cão por companhia que dormitava a seu lado; despertou com a nossa chegada e abanando o rabo , cumprimentou-nos com entusiasmo.

Fazia ainda parte dos seus tarecos, um copo de plástico contendo algumas moedas de cobre que  estava no chão, ligeiramente à frente dos seus pés. À sua direita havia um balde com uma garrafa de agua e uma embalagem de granulado para o cão. À sua esquerda estava um enorme saco de plástico preto, com algumas coisas no seu interior e em cima dele um cartão onde estava escrito:

 

ESTOU  EM  DIFICULDADE

 

POR FAVOR AJUDEM-ME

 

 

 

Não foi preciso perguntar-lhe nada, ele começou por dizer que se tinha formado em direito, que não encontrava colocação, que tinha feito oficiosas, mas o Estado pagava tarde e más horas e assim era impossível viver; como tinha jeitinho para a cozinha, graça aos ensinamentos da sua mãe, uma boa cozinheira, foi trabalhar para a cozinha de um restaurante, de onde foi despedido algum tempo depois .

A crise que se instalou em Portugal afectou também a hotelaria e com a subida do  IVA para 23% aos patrões não restava outra solução a não ser despedir pessoal e como ele era o mais novo na casa

foi o primeiro a ser despedido.

Ironias do destino: Ele que até sabia cozinhar pratos deliciosos agora não tinha onde cozinhar, não tinha que comer, a única coisa que tinha era fome!..

“ Ana, vamos comprar quatro pizas na pizaria “ NAPOLI ”; vai ser uma para cada um; uma para o   “ Mon ami “ uma para o cão “ manécas “ - era assim que ele se chamava – uma para ti e uma para mim. “

Meteram as pernas a caminho e passado uma hora já se deliciavam com as pizas que estavam um espanto!...

Era verão , mês de Agosto, fazia calor, o calçadão da Caparica fervilhava de gente que fazia o seu passeio da tarde e simultaneamente purificava os pulmões com o bom ar do mar da Caparica.

Todas essas pessoas, sem excepção, quando reparavam em nós, olhavam-nos com curiosidade e algum mistério.

Primeiro olhavam para o “ mon ami,” depois  para o cão “ manécas, “ depois para mim e por fim para a Ana e interrogavam-se :

 Mas que estranho quarteto !..

Depois de comida a deliciosa piza. eu disse para a Ana:

“ Ana vamos ter que fazer alguma coisa para ajudar o Mon ami. “

“ Sim mas o quê e como ? “

“ Olha …  tu tens a tua flauta e sabes tocar muito bem o hino à alegria “

  Miguel … eu não tenho a minha flauta aqui comigo. “

“ Ana …. uma artista tem sempre uma flauta consigo e quando não tem inventa !...”

E, como por magia, a Ana tem nas suas mãos a sua flauta mágica e faz com que dela saiam sons agradáveis e melodiosos.

“ O Mon ami “ tem ali um balde, viro-o ao contrário e serve de tambor, fazemos como costumamos fazer quando brincamos nas nossas casas. “

“ Mon ami “ emprestas-me o teu balde ? “

Ele nem teve tempo de responder … já o Miguel tinha o balde virado ao contrário e fazia dele um tambor improvisado.

De pé, a Ana ensaiava os primeiros acordes do hino à alegria e em breve estava já envolvida na melodia que se fazia ouvir tão agradavelmente que as pessoas ficavam arrepiadas de emoção.

“ Que giros … eles são mesmo divertidos. “ Dizia uma miúda para a sua mãe, ambas em biquini. Estavam na praia, foram atraídas pela música e vieram ver ao vivo o que se passava.

“ E ela como toca tão bem a sua flauta. “ Dizia um adolescente para o amigo. “

“ Xiii … patrão … o míníno é mesmo bom no batuque. “ Dizia um africano para a sua namorada.”

Nos seus fatos térmicos havia também alguns surfistas, gente gira, jovem e divertida que batiam palmas ao ritmo da música e ajudavam à festa. 

A música da Ana, o tambor do Miguel, e as palmas dos surfistas foram atraindo cada vez mais gente  e toda aquela envolvênçia era muito agradável de presenciar.

E, eis que há uma primeira pessoa que deposita uma moeda no copo  que estava em frente aos pés do “ Mon ami “ depois outra … e outra … e mais outra … não eram moedas de cobre mas de prata e eram tantas as moedas que o copo já era pequeno para as albergar e o Miguel continuava a tamborilar … a tamborilar … a tamborilar … e a Ana a flautar … a flautar … a flautar … e os surfistas a animar … a animar –- a animar... e as moedas a cair … a cair … a cair … o copo já estava soterrado com tantas moedas. Elas eram a merecida recompensa, o prémio, o corolário deste acto de bondade de audácia e imaginação destes dois pequenos heróis de seis e dez anos de idade  em missão de solidariedade para quem está em dificuldades e precisa de ajuda. 

“ Mon ami “ assistia a tudo com grande estupefacção e surpresa , de tal modo que não conseguia articular um simples “ obrigado. “

Limitava-se ao silêncio , a viver esse momento único, nunca antes sonhado nem vivido, os seus olhos estavam molhados pelas lágrimas e o seu coração transbordava de felicidade e gratidão.

Há muito tempo que “ Mon ami “ não tinha tantas moedas; esta noite podia ir dormir a uma pensão, tomar um banho, barbear-se, cortar o cabelo, comprar novas roupas e no dia seguinte, todo limpinho e cuidado ir procurar trabalho num dos muitos restaurantes da Caparica.

“ Ufff … Ana … estou cansadíssimo, nunca tamborilei tanto na minha vida , e tu como estás?”

“ Eu … eu … nunca toquei tanta flauta como hoje, até me doem as bochechas de tanto soprar. “

“ Estou cansada mas feliz. “

Só há uma coisa que ainda não percebi  muito bem, se isto sucedeu de verdade ou se sonhei?

Quando estiver com a Ana vou perguntar-lhe !..

Este acontecimento foi amplamente divulgado na Caparica .

Mais tarde soubemos que o “ Barbas “ contratou o “ Mon ami “ para cozinheiro da Catedral.

Numa próxima oportunidade iremos lá almoçar e se possível dar um abraço ao nosso  “ Mon ami. “

 

                                                                                                                      Mário Miranda

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