MIGUEL STROGOFF POR UM DIA...

                                                            
Era a hora da sesta e a aldeia parara, respeitando a pausa.
Maio estava no fim e havia no ar uma ameaça de trovoada que, certamente, se cumpriria para o fim da tarde. A estridente campainha do telefone rasgou o silêncio e a minha Mãe apressou-se a atender. Deixei-me ficar imóvel mas atento. Ficava sempre na expectativa quando o telefone tocava, era a hipótese do acontecimento. Não importava muito que fosse bom ou mau desde que fosse excitante.

Aos onze anos, depois de ter lido Julio Verne e centenas de "Mundo de Aventuras", "Condor Popular" e quejandos, a vida rotineira da aldeia parecia-me uma pasmaceira irritante, onde nunca acontecia nada.

Era de longe, de Lisboa certamente, a minha Mãe falava alto para se fazer ouvir. Naquele tempo as ligações telefónicas eram péssimas, especialmente as de longa distância. Pelas suas feições e por algumas palavras soltas apercebi-me que algo de grave se passara e isso pôs-me em pulgas.

Tinha havido um acidente de viação e uma pessoa estava em perigo de vida. Era urgente avisar a família.

Preparei-me mentalmente para a jornada mas o nome da aldeia de destino causou-me um arrepio. Era a pior de todas (na minha classificação) entre as várias terreolas que eu e os meus irmãos percorríamos na missão de entregar mensagens que chegavam pelo nosso telefone.

Era um telefone especial porque se tratava de um Posto Publico, o que por vezes nos dava imensos incómodos, (tais como sermos acordados de madrugada por alguém que precisava de fazer uma chamada urgente), mas eu gostava dele. Era um telefone branco, pesado, e o seu primeiro número foi o 745. Só três algarismos! Era o único em mais de 15 aldeias que, nessa época, fervilhavam de vida e eram densamente povoadas.

Só uma vez tinha ido a tal sítio e fora na companhia do meu irmão. Dessa feita tinha lá ficado um rapazelho com algumas esquimoses que ele havia jurado retribuir com juros. Além disso havia o problema dos cães que saltavam assanhados dos quintais.

Mas era preciso. Minha Mãe foi imperiosa. Não havia tempo para esperar o reforço do meu irmão que só chegaria da escola mais tarde. Foi quando me lembrei de Miguel Strogoff (o herói do livro de Verne) e comparei a minha missão à dele. A minha Mãe era o Czar e estava neste momento redigindo a importantíssima mensagem que eu, enfrentando mil perigos, levaria junto ao coração e defenderia com a própria vida. Com grande exaltação, imaginei-me a atravessar a estepe siberiana lutando incansávelmente contra as intempéries e os ferozes e inúmeros inimigos.

As aldeias do meu itinerário foram rápidamente mudando de nome e de Outeiro, Barbas, Germinade; passaram a Irkutsk, Tomsk, Novi-Gorod!

" O meu Czar " cortou cuidadosamente o pedaço de papel que continha a mensagem,separando-o da resma multiusos que estava sempre sobre o balcão, e entregou-mo. Antes de o guardar vi de relance o que mais me importava: em jeito de Post Scriptum a minha mãe, na sua letra redonda e agradável, escreveu: Pagar ao Portador 3$50. Era o máximo da nossa tarifa. Só nos atrevíamos a tanto quando a povoação ficava muito afastada e, mesmo assim, tínhamos por vezes destinatários que reclamavam, indignados com a exorbitância.

Fui-me equipar para a jornada. A minha fisga e o meu arco eram os companheiros inseparáveis e indispensáveis nas minhas viagens. A fisga era uma arma de defesa e o arco levava-me atrás dele, deslizando por carreiros e caminhos e eu sentía-me transportado, quase não dando pelo cansaço.

Parti sem ouvir as insistentes recomendações da minha mãe. Sérgio leva o casaco, Sérgio leva o guarda-chuva, Sérgio vem depressa. A minha cabeça estava cheia de belas imagens para ligar a ninharias. Imaginava-me elegantíssimo, na minha farda branca de oficial do Exército Imperial, recebendo, joelho em terra, a benção do Czar.

Atravessei o primeiro povoado em velocidade de cruzeiro não parando nem para falar ao Tateta que, na sua linguagem entaramelada, me chamava muito agitado, certamente para me mostrar mais um dos inúmeros ninhos que ele descobria na sua exploração constante. O grande pinhal também ficou para trás rapidamente dada a grande aceleração que eu sempre fazia naquela zona mal afamada. Já lá houvera assaltos e ataques de lobos que, esfaimados, por vezes desciam da serra.

Segui depois atalhando por apertados carreiros que levavam à próxima aldeia. Nos silvados ouvia o rastejar das cobras e o correr dos lagartos que fugiam assustados pelo chiar do meu arco.

De súbito, feio e feroz como a Besta do Apocalipse, saltou-me ao caminho o Farrusco.

Eu e o Farrusco tinhamos aberto uma conta corrente e da última vez que a tinhamos movimentado a minha fisga tinha aumentado o meu crédito de tal forma que o bravo animal estava desejoso de equilibrar o saldo. Após o susto fui recuperando o sangue frio e um providencial pau, ali deixado por acaso, apetrechou-me para a luta corpo a corpo, já que a fisga não era a arma indicada para responder a emboscadas deste jaez.

O meu adversário apercebeu-se da minha recuperação e passou a jogar mais à defesa enquanto optava pelo contra ataque. Depois de várias pauladas em falso, consegui acertar em cheio no endiabrado rafeiro e lá se foi ele a ganir e a rosnar, prometendo-me na sua língua de cão, futuras e terríveis vinganças.

Esta vitória exaltou-me de tal forma que me achei digno de me equiparar ao valente Miguel Strogoff e capaz de ultrapassar todos os perigos e vencer todos os inimigos. Fiquei até um pouco decepcionado por ter chegado ao meu destino sem que pelo menos um cavaleiro tártaro me atacasse brandindo a sua espada curva e enorme e gritando maldições em ininteligível dialecto.

Entrei na aldeia já tarde. As nuvens negras que se amontoavam para o lado da Estrela não prenunciavam nada de bom.

Entreguei a minha missiva perfilado, orgulhoso do dever cumprido e até um pouco vaidoso por a notícia que eu trazia ser tão importante que transtornou toda aquela família. Entretanto comecei a ficar preocupado quando as pessoas, desatando a chorar e a gritar se esqueceram completamente de mim. E os meus três e quinhentos?... Um pouco embaraçado, abeirei-me da pessoa que segurava ainda o fatídico bilhete e tentei fazê-la compreender que devia ler também o "Post Scriptum". Foi uma crueldade mas aquelas moedas eram muito importantes para mim. Se regressasse sem elas os meus irmãos não me perdoariam. Aquele dinheiro seria religiosamente guardado num mealheiro conjunto onde queríamos atingir a soma astronómica de 200$00 que nos daria acesso a uma, todos os dias sonhada, linda bicicleta.

A senhora fitou-me, estupefacta com a minha cara de pau, e desandou bruscamente para dentro de casa. Voltou com o dinheiro que quase me atirou e notei no seu olhar aquele desprezo que castiga,injustamente, os mensageiros da desgraça. Mas nem o desgosto a fizera enganar-se; lá estavam, única e simplesmente, os honorários pedidos pela minha espinhosa, e tão mal compreendida, tarefa.

Quando iniciava o regresso apercebi-me de uma movimentação estranha numa rua que eu conhecia bem e logo compreendi que a minha presença na aldeia tinha sido detectada por um dos espiões do meu figadal inimigo: o Zé Sapo. Era um rapazelho da minha idade mas, pelo seu enorme corpanzil, ninguém o diria. Olhando para a sua cara percebia-se que ele não podia ter outra alcunha. Era tão feio que, até quando se ria, metia medo. Dominava todos os miúdos da sua aldeia e ai daquele que não lhe prestasse vassalagem.

Tentara até alargar a sua influência para lá do rio, mas foi então que eu e os meus companheiros lhe fizemos frente numa batalha de que resultaram algumas cabeças partidas.

Só a rapidez me poderia salvar de graves dissabores. O meu arco rodava a uma velocidade louca e em breve tinha deixado para trás as últimas casas do Salgueiro. Mas aconteceu o que eu já temia. Numa curva do caminho quase esbarrei com o Sapo acompanhado de dois bandoleiros ( como eu gostava de lhes chamar).

Parei o meu arco a dois metros dos algozes e fiquei com o gancho na mão direita como única arma de defesa. Eles não tinham pressa, ao contrário de mim, que para além desta enrascada, estava longe de casa e tinha a trovoada e a noite muito próximas.

Eles diziam piadas, riam-se muito e davam-me pequenos encontrões para me provocarem. Pensei rapidamente numa estratégia e concluí que a única vantagem que tinha era o excesso de confiança deles. O Sapo era o único que me preocupava porque os outros eram fracalhotes para mim. Decidi tomar a iniciativa. Fingi que me virava para fugir e, de súbito, dei uma "ganchada" na cara do chefe do "gang" que o fez dar um grito de dor e raiva ao mesmo tempo que levava as mãos á cara. Aproveitei para lhe assentar um forte murro no estômago e, dando um empurrão no mais fraco dos meus inimigos, desatei a correr o mais que podia. Pouco depois cheguei à conclusão que tinha vencido e que eles já não me apanhariam porque, apesar de eu estar mais cansado, corria a caminho de casa e desejava tanto lá chegar depressa que as minhas pernas corriam automáticamente, como se tivessem ganho independência e não precisassem do resto do corpo que, esse, estava quase a rebentar.

Tinha perdido o meu arco. Era uma perda importante para mim. Além de uma bola de borracha furada e da fisga era tudo o que eu tinha. Talvez ainda o recuperasse mas o Zé Sapo não o largaria com facilidade e mostrá-lo-ia aos amigos como despojo de guerra.

Um relâmpago e o ribombar do respectivo trovão quase de imediato causaram-me um calafrio. Escurecera prematuramente devido à trovoada e eu, quase por instinto, desviava-me das pedras e dos buracos do caminho e continuava a minha acelerada marcha de regresso. Lembrei-me de Miguel Strogoff e achei-me em desvantagem com o meu herói por ter uma viagem de volta tão dura e espinhosa enquanto ele apenas sofreu na ida.

Começou a chover torrencialmente e talvez tenha sido isso que me salvou de mais um desagradável encontro com o Farrusco que apesar de mau não era estúpido e a essa hora estaria a desfrutar do quentinho da sua casota.

Encharcado até aos ossos, sem ver nada à minha frente devido à chuva e à escuridão, senti-me perdido e apeteceu-me chorar. As lágrimas misturavam-se com a chuva que me batia na cara e só o medo que eu tinha dos lobos me impediu de ceder ao cansaço e, num derradeiro esforço continuei até à próxima aldeia.

Agora a chuva parara. Atravessei o Outeiro já sem receio apesar das ruas desertas. Ouvia o crepitar da lenha nas lareiras e vinham até mim os aromas que as donas de casa se apressavam a aprontar sob os olhares gulosos da famelga esfomeada.

Ao cansaço veio juntar-se a fome e o frio. Reagi e esforcei-me por pensar unicamente na minha lareira quentinha e na ceia gostosa que a minha mãe tinha feito, talvez a pensar em mim.

Finalmente chegaram reforços. O meu pai, carregado de agasalhos, viera ao meu encontro. Em casa estavam preocupados comigo e, quando eu cheguei, os meus irmãos rodearam-me em grande algazarra fazendo perguntas, falando todos ao mesmo tempo. Mas, bom mesmo, foi o sorriso doce da minha Mãe quando me puxou para a lareira.

Senti-me de novo Miguel Strogoff na sua hora de glória, recebendo as honrarias devidas a tão grande feito. Num gesto largo meti a mão no bolso, mantive-a depois fechada um instante abrindo-a depois com ar triunfal: molhados do suor e da chuva, brilhando à luz da fogueira, lá estavam os meus três e quinhentos.



Sérgio Figueiredo

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